A Emenda Constitucional nº 66/2010 deu nova redação ao artigo 226, § 6º da Constituição Federal[1], determinando que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, passando a ser automático e imotivado.
Assim, determinados requisitos para o divórcio, como o transcurso de determinado lapso temporal, a exposição de motivos e a questão relativa à culpa pelo fim da relação deixaram de ser exigidos.
Atualmente, o divórcio trata-se de um direito potestativo incondicionado, o que o autoriza independentemente de qualquer prova ou condição, sendo um exercício de autonomia privada, não podendo a parte contrária se opor a ele.
O único requisito exigido para a decretação do divórcio é a vontade inequívoca de um dos cônjuges em colocar fim à sociedade conjugal.
Importante lembrar como não é saudável para a sociedade obrigar pessoas que não se amam mais ou que não desejam mais manter esse vínculo jurídico subordinadas a ele por um longo período, devendo se respeitar a liberdade e autonomia privada do indivíduo.
Ao mencionarem sobre “o direito de não permanecer casado” concluem Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
“Ora, compreendida a amplitude conceitual da cláusula geral da proteção da personalidade humana, a dignidade da pessoa humana, não pode haver dúvidas de que se é direito da pessoa constituir, formar, um núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a própria existência digna, impondo-lhe um sacrifício pessoal e emocional, nitidamente atentatório à sua dignidade.
(…)
Nessa linha de ideias, sobreleva reconhecer que é preciso permear toda a compreensão dogmática jurídica da dissolução do casamento a partir do direito de não permanecer casado, como expressão da materialização da dignidade humana em sede familiarista, implicando o redimensionamento das normas do Código Civil Brasileiro.”[2]
A temática foi bem retratada pela I. jurista Fernanda Tartuce em artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil v. 95, mar-abr 2020, intitulado “Divórcio liminar como tutela provisória de evidência: avanços e resistências”[3], sendo destacada a presente conclusão:
“O CPC/2015 ampliou a possibilidade de concessão de tutelas provisórias para incluir hipóteses em que não há urgência, prevendo para tanto o instituto da tutela de evidência.
No âmbito das relações familiares discute-se a concessão da tutela de evidência para a decretação liminar do divórcio.
O divórcio liminar pode ser concedido em sede de tutela de evidência. Apesar de não estar previsto no rol do art. 311 do CPC, o pedido de divórcio é um direito claro (direito evidente). Com o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, passou-se a reconhecer o divórcio como direito potestativo; assim, o réu não pode resistir à decretação do fim do vínculo matrimonial. Embora seja comum em demandas de divórcio a formulação de vários pedidos (como os relativos a guarda de filhos, fixação de alimentos e partilha de bens), a cumulação não impede a decretação liminar do divórcio. A cisão do julgamento dos pedidos é técnica expressamente prevista no Código de Processo Civil atual. A título de contribuição, foi editado o enunciado 18 do IBDFAM para esclarecer sobre a possibilidade de decretar o divórcio em sede de julgamento parcial do mérito (art. 356 do CPC).
Embora o reconhecimento doutrinário da concessão liminar do divórcio pareça predominar e em algumas decisões também haja tal visão favorável, nem sempre os magistrados acolhem o pedido de divórcio liminar.
A resistência absolutamente não se justifica. O deferimento liminar do divórcio, além de prestigiar a celeridade do processo, valoriza a autonomia de cada pessoa – que precisa poder fazer suas próprias escolhas e viver como melhor lhe convém no exercício de sua dignidade.”
Assim, oportuno citar o Enunciado 18 do IBDFAM que estabelece a possibilidade de decretação do divórcio antes mesmo da sentença:
“Nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas”.
Porém, apesar do divórcio ser admitido de maneira direta, inúmeros precedentes jurisprudenciais revelam o indeferimento do pedido liminar pelo respeito ao princípio do contraditório, como se verifica abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Divórcio litigioso Insurgência contra decisão que indeferiu tutela de evidência para decretação liminar do divórcio Não acolhimento Ausência dos requisitos previstos no artigo 311, do CPC Necessária manifestação da parte adversa Precedentes Apesar da natureza potestativa do direito ao divórcio, este deve ser declarado após a formação do contraditório RECURSO DESPROVIDO.” (TJSP; Agravo de Instrumento 2273141-05.2021.8.26.0000; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba – 3ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 14/02/2022; Data de Registro: 14/02/2022 (grifo nosso).
Agravo de instrumento Divórcio litigioso. Indeferimento da tutela pleiteada para decreto liminar do divórcio. Pedido de reforma. Não cabimento. Ainda que se trate de direito potestativo não se mostra possível o decreto de divórcio sem a manifestação da parte contrária. Ausência dos requisitos dos artigos 300 e 311 do CPC. Necessidade de formação do contraditório. Decisão que deve ser preservada. Não provimento. (Agravo de Instrumento nº 2150989-18.2022.8.26.0000, Relator Enio Zuliani, j. em 20/07/2022). (grifo nosso).
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de divórcio litigioso c.c. partilha de bens. Decisão recorrida que indeferiu o pedido formulado pelo autor de decretação do divórcio em sede liminar. Inconformismo. Não acolhimento. Ausência de preenchimento dos requisitos para concessão de tutela de urgência ou evidência. Muito embora a decretação do divórcio independa da concordância da parte contrária, desde o advento da ECnº 66, é imprescindível sua integração à relação processual, para que tome ciência da pretensão deduzida pelo autor, tendo em vista a irreversibilidade da medida. Precedentes. Provimento jurisdicional pretendido que se equipara ao divórcio impositivo, rechaçado pela Recomendação nº 36/2019 do CNJ. Decisão confirmada. NEGADO PROVIMENTO AORECURSO”. (v. 38394). (TJSP; Agravo de Instrumento 2291471-50.2021.8.26.0000; Relator (a): Viviani Nicolau; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Peruíbe – 2ª Vara; Data do Julgamento 23/03/2022; Data de Registro: 23/03/2022) (grifo nosso).
AGRAVO DE INSTRUMENTO Tutela Provisória de Evidência Decretação liminar do divórcio Inadmissibilidade – Ainda que com o advento da Emenda Constitucional n. 66, de 13/07/2010, que alterou a redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, a dissolução do casamento civil pelo divórcio independe de motivação ou anuência do cônjuge, tal argumento não é suficiente para a concessão da tutela de evidência liminarmente antes de decorrido o prazo para a resposta Aplicação do inciso IV do art. 311 do CPC/2015 – Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento nº 218,0909-37.2022.8.26.0000, Relator Alcides Leopoldo, j. em 01/02/2023) (grifo nosso).
Agravo de instrumento. Ação de divórcio. Decisão que indeferiu o pedido de tutela de urgência para decretar o divórcio. Inconformismo. Descabimento. Requisitos para a concessão da tutela provisória não preenchidos. Embora se trate de direito potestativo, prudente aguardar a citação do outro divorciando antes de se decretar o divórcio. Possibilidade de decretação do divórcio após a efetivação da citação, seja por meio de tutela provisória (art. 294 e seguintes, do Código de Processo Civil) ou através do julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356, do Código de Processo Civil). Decisão mantida. Agravo improvido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2086842-46.2023.8.26.0000; Relator (a): Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 11/05/2023; Data de Registro: 11/05/2023) (grifo nosso).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIVÓRCIO – Pedido de julgamento antecipado do mérito negado – O julgamento antecipado parcial do mérito, ao contrário do que sustenta a agravante, não prescinde de regular citação e contraditório – Igualmente, hipótese do artigo 311, IV, do CPC a exigir prévio contraditório, não comportando deferimento liminar – Natureza potestativa do direito não significa necessariamente o cabimento de sua tutela antes do contraditório – Decisão mantida – Recurso desprovido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2127505-37.2023.8.26.0000; Relator (a): Salles Rossi; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Buritama – 1ª Vara; Data do Julgamento: 29/05/2023; Data de Registro: 29/05/2023) (grifo nosso)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA DE DECRETAÇÃO DO DIVÓRCIO ‘INAUDITA ALTERA PARTE’ – MEDIDA INDEFERIDA PELO JUÍZO ‘A QUO’. SEGUNDO ALEGA A AUTORA, PARTES ESTÃO SEPARADAS DESDE DEZEMBRO DE 2022, ASSIM, INEXISTE URGÊNCIA. NATUREZA POTESTATIVA DO DIREITO QUE NÃO SIGNIFICA, NECESSARIAMENTE, CABIMENTO DE SUA TUTELA ANTES DO CONTRADITÓRIO. MEDIDA PRETENDIDA QUE SE TORNA IRREVERSÍVEL. DECISÃO MANTIDA. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2109000-95.2023.8.26.0000; Relator (a): Silvério da Silva; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Buri – Vara Única; Data do Julgamento: 31/05/2023; Data de Registro: 31/05/2023) (grifo nosso).
A posição jurisprudencial que se revela contrária à decretação liminar do divórcio se respalda:
- na imprescindibilidade de integração da parte contrária à relação processual, para que tome ciência da pretensão deduzida, sendo respeitado o contraditório, considerando a irreversibilidade da medida;
- nos artigos 9º e 10 do Código de Processo Civil [4] que vedam a possibilidade de decisão surpresa;
- na impossibilidade de antecipação dos efeitos da tutela na hipótese de irreversibilidade, conforme determinam os artigos 300, § 3º, do Código de Processo Civil [5]e 33 da Lei n. 6.515/77[6], uma vez que decretado o divórcio, os antigos cônjuges só poderão restabelecer a união conjugal mediante novo casamento.
Entretanto, não se vislumbra a possibilidade de prejuízo à parte contrária, isso porque, qualquer alegação ou fundamento trazido não será capaz de impedir o divórcio.
Por mais que o entendimento predominante nas Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo seja quanto à imprescindibilidade de citação do outro cônjuge para a decretação liminar do divórcio, verifica-se a existência de julgados decretando liminarmente o divórcio nas hipóteses que o réu está em local incerto e não sabido, restando prejudicadas as tentativas de sua citação, como se constata abaixo:
TUTELA DE EVIDÊNCIA. Decisão que indefere pedido liminar de decreto de divórcio. Desacerto. Emenda Constitucional nº 66/2010. Inteligência da nova redação dada ao artigo 226, § 6º da Constituição Federal, a possibilitar o divórcio sempre direto e imotivado. Requerida que abandonou o lar conjugal e está em lugar incerto e não sabido. Eventual defesa que não afetará o direito potestativo à obtenção do divórcio. Recurso provido” (TJSP; Agravo de Instrumento 2128610-54.2020.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campo Limpo Paulista – 2ª Vara; Data do Julgamento: 23/07/2020; Data de Registro: 23/07/2020).
TUTELA ANTECIPADA – Divórcio – Tutela de evidência indeferida – Inconformismo da autora – Possibilidade de divórcio direto após a EC66 – Direito potestativo – Partes que estão separadas há 18 anos – Réu que se encontra em local incerto e não sabido – Defesa que não impede o exercício do direito potestativo de divórcio – Decisão reformada – Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2283630-04.2021.8.26.0000; Relator (a): Rui Cascaldi; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VII – Itaquera – 3ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 13/04/2022; Data de Registro: 13/04/2022)
Feitos esses esclarecimentos e demonstrados os recentes julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deve o advogado estar atento a essa nova “possibilidade” formulando o pedido de decretação liminar do divórcio na própria petição inicial, na tentativa de obter o seu deferimento de forma mais célere, satisfazendo a necessidade do seu cliente que já manifestou a sua inequívoca vontade de se divorciar e resguardando assim, o seu direito à dignidade, liberdade e autonomia privada para conduzir a sua vida da melhor maneira.
[1] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio
[2] Direito das Famílias, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 277/278
[3] Disponível em: http://www.fernandatartuce.com.br/wp-content/uploads/2020/06/Divorcio-liminar-como-tutela-de-evidencia-Fernanda-Tartuce.pdf
[4] Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I – à tutela provisória de urgência;
II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III ;
III – à decisão prevista no art. 701 .
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
[5] § 3º A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
[6] Art 33 – Se os cônjuges divorciados quiserem restabelecer a união conjugal só poderão fazê-lo mediante novo casamento.